terça-feira, 29 de setembro de 2009

Túrin Turambar e o Livre-Arbítrio.



São frequentes pela Internet afora discussões envolvendo o Livre-Arbítrio de Túrin Turambar. Inclusive, recentemente, o tema do Livre-Arbítrio em Tolkien , o ponto cardinal nessa discussão, foi o fulcro de um acalorado debate entre Verlyn Flieger e Carl Hostetter que assumiram duas posições distintas com relação ao livre-arbítrio dos elfos, ambos, todavia concordando totalmente com relação ao livre-arbítrio humano, reconhecendo sua coexistência com a Divina Providência de Ilúvatar e, portanto, com a Predestinação que isso gera.

Não conscientes dessas recentes evoluções da discussão , nessa matéria, como em tudo que envolve Teologia e Filosofia, as pessoas daqui do Brasil costumam se engajar em conversas de surdos usando terminologias inapropriadas e discrepantes e , frequentemente, sendo despistados por noções preconcebidas sobre o que é Predestinação e sobre o que consiste, realmente, a Free Will. Esse é o aproveitamento de um sumário feito pra reduzir esses problemas.

O dilema todo parte do fato de que no Silmarillion, Melkor "amaldiçoou Húrin , Morwen e seus descendentes, mas Tolkien enfatizou que os Homens não estavam presos à Canção dos Ainur e tinham Livre-Arbítrio.Então algumas pessoas extrapolam a conclusão pra dizer que o que houve com Túrin teria sido somente um uso de livre-arbítrio mal "arbitrado" e que a maldição de Morgoth teria efeito apenas como forma de "sugestão" psicológica e não como um poder sobrenatural pairando sobre a vida do personagem. A análise dos textos que acompanham Children of Húrin e das Cartas de Tolkien desmente essa conclusão.Mas vamos por partes.

Em primeiro lugar, as pessoas têm um problema meio sério quando vão analisar essa questão.Muitas acham que Predestinação não pode coexistir com Livre-arbítrio e, portanto, não conseguem compreender muito bem como é que a existência de “previsões” ou visões proféticas no Tolkien pode se harmonizar com a dádiva da “free-will”.




O que acontece aí é que o Tolkien está usando como referencial a concepção teológica tomista católica( de São Tomás de Aquino) sobre a matéria. Ela está explicada nas suas linhas gerais nesse texto aí:

Estudos da Bíblia

Uma análise mais detalhada e profunda pode ser achada aí:

Livre Arbítrio e Presciência Divina -A Solução dos medievais

Excelente texto sobre o tema em inglês.

Fate and Free Will in Tolkien's Middle-earth

Reparem na similaridade da terminologia empregada por Tolkien qdo vai explicar diversas coisas no Osanwë Kenta. em sua nota número 6.


Para São Tomás e para os católicos ( e Tolkien era católico), o conhecimento pleno do Espaço e do Tempo é uma conseqüência necessária da Onisciência de Deus e, portanto EXISTE PREDESTINAÇÃO mas SEM que isso implique em perda de Livre-Arbítrio. Eru e Jeová vivem “fora” do tempo e vêem o presente, o passado e o futuro SIMULTANEAMENTE ).Em Tolkien, a mesma coisa acontece e os Ainur foram instrumentos de Deus em criar essa Predestinação que é a Música dos Ainur como foi cantada. Melkor e todos os Ainur em Tolkien foram os ajudantes em criar a “planta”, o projeto arquitetônico do Espaço-Tempo.
Assim, do mesmo jeito que ninguém “vê” o futuro enquanto dentro do Espaço-Tempo , de Eä salvo por graça de Eru, ninguém abaixo de Ilúvatar tem o poder de determinar ou influenciar o destino de um ser ( ou seja de mudar a Música)a menos que isso tenha sido permitido por Eru. E é aí que está: ISSO ACONTECEU na Canção dos Ainur!



Morgoth não precisa “mudar o destino” de Húrin e sua família por meios sobrenaturais dentro de Eä e nem tem esse poder mas ele NÃO PRECISA TÊ-LO porque, por Graça de Eru, ele foi co-partícipe no processo de criação do “projeto” do Tempo-Espaço e sua discórdia tornou-se parte do Terceiro Tema que introduziu os Elfos e os Homens. Essa “Predestinação” maligna, que já é parte da Canção,( eis o porquê de “coincidências” como o reencontro dos dois irmãos) é uma “Maldição” sobre o Húrin e sua família mas isso não implica em perda do Livre-Arbítrio de nenhum deles porque a Predestinação não tem esse efeito. Húrin e sua família poderiam ter mudado o Destino O problema é que Morgoth, estando dentro de Eä, como personagem da história que ele ajudou a escrever, faz de tudo ao seu alcance pra impedir que isso aconteça.Ele é como um mestre de RPG que tenta obrigar os jogadores a se comportarem de acordo com o script. O script ele co-roteirizou junto com Eru Ilúvatar e os outros Ainur




Assim, parte desse conhecimento prévio do Contínuo Espaço-Tempo que é de Eru somente, é partilhado com os Valar porque eles foram auxiliares no processo de criação do “Conto de Arda” ao entoarem ( e distorcerem ) a Música . Por isso eles não só prevêem ( já que "pré-viram" na Visão e se lembram do que cantaram)) o que vai acontecer mas “criaram” também o destino de Eä enquanto cantavam. A discórdia semeada por Melkor no momento em que a Ainulindalë foi feita se manifesta como uma “predestinação” maligna sobre tudo que existe em Eä e, especialmente, nos aspectos ou elementos da “História”onde ele mais se concentrou como no destino dos Filhos de Húrin e no dos Noldor. É daí que viria a tendência para a Entropia na Criação de Ilúvatar, já que Melkor era tangido pelo seu desejo niilista.

Mas o fato deles estarem “predestinados”, desse destino ser ruim e, portanto, uma maldição, não impede que eles usem o livre-arbítrio pra mudar o destino. O conhecimento prévio da escolha a ser feita e de suas consequências eventuais por Eru ou, parcialmente, pelos Valar ou Morgoth, não impõe essa escolha aos Filhos de Ilúvatar.os Homens não estão presos ao que foi cantado e os Elfos ,por graça de Eru, podem ter o seu livre-arbítrio acolhido por Ilúvatar como uma mudança no "destino" do Mundo como ficou implícito ter acontecido no caso de Lúthien Tinúviel que entreteceu seu fado com o do mortal Beren.

Considerar as palavras de Húrin ditas no capítulo "Das palavras de Húrin e Morgoth", como verdades absolutas é incorreto. Húrin achava que o que Melkor dizia era jactância sem sentido que ele não poderia "comandar" seus filhos e Morwen à distância para que eles cumprissem a "profecia" ominosa do Vala "enquanto ele quisesse conservar seu corpo e ser um Rei visível na Terra" e muitos leitores o interpretam ao pé da letra. O texto inteiro da introdução que o Christopher Tolkien fez ao Children of Húrin destaca um fato importante: que , embora o que Húrin tenha dito a Morgoth contivesse muitas verdades, várias das crenças dele partiam de uma perspectiva limitada que subestimava tremendamente a verdadeira extensão dos poderes de Morgoth.




É por isso que Christopher Tolkien diz na introdução que a maldição de Melkor é mais do que uma imprecação pra que um poder superior intervenha, mas sim "uma "malediction" de vasto e misterioso poder". Não há nada de misterioso na mera manipulação de poder temporal ou no uso de servos como Glaurung pra fazer a vontade de Morgoth. É, pois, em outro aspecto que a Maldição realmente se manifesta.


But the tragedy of his life is by no means compre¬hended solely in the portrayal of character, for he was condemned to live trapped in a malediction of huge and mysterious power, the curse of hatred set by Morgoth upon Húrin and Morwen and their children, because Húrin defied him, and refused his will.(...) The curse of such a being, who can claim that ‘the shadow of my purpose lies upon Arda [the Earth], and all that is in it bends slowly and surely to my will’, is unlike the curses or imprecations of beings of far less power. Morgoth is not ‘invoking’ evil or calamity on Húrin and his children, he is not ‘calling on’ a higher power to be the agent: for he, ‘Master of the fates of Arda’ as he named himself to Húrin, intends to bring about the ruin of his enemy by the force of his own gigantic will. Thus he ‘designs’ the future of those whom he hates, and so he says to Húrin: ‘Upon all whom you love my thought shall weigh as a cloud of Doom, and it shall bring them down into darkness and despair.’


Melkor, como já dito, é como um Mestre de RPG que tenta fazer com que os jogadores sigam o roteiro da campanha definido por ele sendo ele próprio, além do Gamemaster, um NPC influente no cenário. Melkor foi co-roteirista da "aventura" que é o Conto de Arda. Assim como acontece com os players no RPG, a família de Húrin tem o poder de fugir do roteiro preexistente mas Melkor manipula, já como personagem da peça que ele mesmo escreveu, os eventos pra que isso não aconteça, para que eles não usem a dádiva do Livre-arbítrio de maneira sábia.

Comentário de Tolkien recentemente editado por Verlyn Flieger em Tolkien Studies 6.É óbvia a inferência de que ele pensava em Édipo Rei de Sófocles e, por via de consequência, em Túrin quando escreveu essa passagem, já que ELE MESMO comparou ambos.

:They [i.e. Elves] would not have denied that (say) a man was
(may have been) “fated” to meet an enemy of his at a certain
time and place, but they would have denied that he was
“fated” then to speak to him in terms of hatred, or to slay
him.
“Will” at a certain grade must enter into many of the
complex motions leading to a meeting of persons; but the
Eldar held that only those efforts of “will” were “free” which
were directed to a fully aware purpose.

E uma vez que foi cantado, o Mal disseminado na Ainulindalë fará com que o "Universo conspire" para tornar a Predestinação realidade. Assim é que , por exemplo, Nienor e Túrin se encontram por "acaso" com ela, justamente, sob um feitiço conjurado por Glaurung pra provocar amnésia nela, precisamente em cima do túmulo de Finduilas. Isso não é, simplesmente, uma obra do "acaso", mas de um "Acaso" qualificado , sendo, precisamente, onde a Maldição atua com mais força: eventos aleatórios se moldam ao desígnio de Morgoth, " vergam-se lenta e firmemente à sua vontade". A "estória" cantada na Música dos Ainur se torna ou tende a se tornar "história" como Tolkien explicou em uma de suas cartas.

Carta nº212

Isso lhes foi proposto primeiramente em forma musical ou abstrata e depois em uma “visão histórica”. Na primeira interpretação, a vasta Música dos Ainur, Melkor introduziu alterações, não interpretações da mente do Único, e surgiu uma grande dissonância. O Único então apresentou essa “Música”, incluindo as aparentes dissonâncias, como uma “história” visível.

Neste estágio ela ainda possuía apenas uma validade, a qual a validade de uma “história” ( "story" )entre nós mesmos pode ser comparada: ela “existe” na mente do contador e derivativamente nas mentes dos ouvintes, mas não no mesmo plano como o contador ou os ouvintes. Quando o Único (o Contador) disse Que Exista *, o Conto então se tornou História, no mesmo plano que os ouvintes; e estes poderiam, caso desejassem, entrar nela. Muitos dos Ainur entraram nela e nela devem residir até o Fim, sendo envolvidos no Tempo, a série de eventos que a completa. Esses eram os Valar e seus servidores menores. São aqueles que se “enamoraram” pela visão e sem dúvida foram aqueles que desempenharam a parte mais “subcriativa” (ou, como poderíamos dizer, “artística”) na Música.


É por isso que Glaurung já sabia que Nienor estava grávida quando pôs os olhos nela no fim da história. Ele e Melkor já haviam planejado pra que acontecesse exatamente o que houve : o incesto entre os dois irmãos.



Assim, esse tipo de onisciência ou clarividência limitadas de Morgoth é um corolário da própria Providência de Eru Ilúvatar e é o metodo segundo o qual sua Curse produz efeitos, explorando e cooptando o livre-arbítrio dos indivíduos amaldiçoados e manipulando eventos "casuais" e "coincindências" para que elas auxiliem em produzir o efeito final.



Mas Tolkien desde muito tempo antes já esboçava na sua leitura da Volsunga Saga o fato de que ele não havia, de fato, terminado com Túrin quando a história dele finalizou

Tolkien makes this renewal contingent on Sigurd, whose death is required so that he can lead Odin's host of warriors in the final battle: “If in day of Doom / one deathless stands / who death hath tasted/ and dies no more, / the serpent-slayer,/ seed of Odin,/ then all shall not end, / nor Earth perish.

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