sábado, 6 de março de 2010

Oromë e Tilion-O Deus de Chifres Celta no Legendarium de Tolkien




O Senhor da Caçada Selvagem, o deus de chifres celta e a “Lua do Caçador”

Muitas vezes quando se está tentando explicar Tolkien é comum se recorrer a analogias para tornar mais claro a linha de raciocínio. Algumas pessoas acham que isso torna a explicação longa demais e ininteligível , na maioria das vezes, porque passa a se estender por mais do que dez linhas. Mas a verdade é que a obra de Tolkien por ser construída através de bricolagem, com o uso de fontes heterogêneas “coladas” e transformadas pelo contexto que ele cria, só é realmente bem compreendida pelo uso de analogias, já que sendo o mundo inventado de raíz nem todas as partes serão detalhadas e explicadas com o mesmo grau de minúcia, gerando os pontos obscuros do Legendarium. Tolkien frequentemente usou analogias para explicar e definir conceitos criados a partir de homólogos do “mundo real”, seja destacando inspirações mitológicas,teológicas ou modelos históricos para o que ele fazia na Terra- Média

O rastreio das influências, quando feito com critério, é uma excelente porta de entrada para os processos de pensamento do artista que, assim sendo, pode ser melhor estudado e compreendido. O procedimento que pode receber a alcunha de engenharia reversa, é um intrumento notável que dirime dúvidas e evita erros por parte de intérpretes, tradutores e consumidores do trabalho artístico.

Um exemplo singelo e, porém, elucidativo pode ser encontrado na mitologia criada por Tolkien. Em sua criação mitopéica o mundo é regido por entidades benignas que, grosso modo, podem ser equiparadas aos deuses pagãos. Um desses seres, guardiões do Mundo Material, Oromë, tem, como um de seus servos, um semi-deus, ou “espírito” de menor estatura que é o timoneiro da nave que é a lua terrestre. No texto em inglês é dito que o nome desse gênio é Tilion, cujo nome significa “ the horned”. O elemento “til” do seu nome é traduzido como “chifre” que em inglês é “horn”. Horned então deveria ser traduzido, literalmente, como “portador de chifres”, ou “munido de chifres” ( como feito na edição brasileira da Martins Fontes) para se evitar as conotações pejorativas atribuídas aos termos “chifrudo” ou “cornudo” no nosso idioma.




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Oromë e Tulkas-irmãos de armas no traço de Tiago Kirsch-tem o grande mérito de ser ,até onde sei, a única representação de Orome adornado com chifres


Entretanto, “horn” em inglês também pode ser traduzido como “ curva” ou “ponta” ( de onde proveio também a expressão “horny” correspondente a sexualmente excitado) e a autora da tradução do livro em Portugal acabou traduzindo “horned” como “ encurvado” porque não conseguiu compreender por que uma entidade benevolente seria denominada “chifruda” no contexto dos mitos de Tolkien onde o demônio judaico-cristão é um colega rebelado de Oromë e dos demais “deuses”.



Deusa Artemis e seu arco "encurvado" representando uma argêntea lua nova



Oromë e seu arco arbóreo, na arte de Daniel Govar, reparem nas discretas ramificações sutilmente reminiscentes de chifres no elmo do vala

Tal equívoco poderia ter sido evitado se a tradutora, que, no geral, fez um trabalho magistral, soubesse que os chifres associados à figura do Demônio na iconografia cristã são resultantes de um processo de sincretização ( que, claro, também é um tipo de bricolagem) que o Satã bíblico sofreu com entidades da mitologia celta tutelares dos ritos sazonais que festejavam a fecundidade, a qual , aliás, é o simbolismo original dos chifres.

Na mitologia céltica, a entidade chamada Herne ( mesma raiz de horn e de corno), Cernunos, Carnum, representa o ciclo infindável de morte e renascimento vivenciado pela natureza e, portanto, acabou associada não somente aos rituais da fertilidade, mas, também, ao Submundo , o reino Inferior onde habitam os mortos. Sob esse aspecto, como captor e regente dos mortos, Herne recebia o nome de Gwyn Mab Nud ou Arawn e era o governante de Annyvn, o Submundo celta, e, portanto, um equivalente do greco-romano Hades/Plutão.



Gwyn Mab Nud ou Arawn eram tidos como os condutores da chamada Caçada Selvagem que, por ocasião do Equinócio de Outono, fendia os céus setentrionais da Europa numa celebração dionisíaca da vida que era uma rememoração em nome dos finados e, também, uma preparação para a morte simbólica da natureza que, em breve, perderia seu viço ante a chegada do Inverno*. A trompa desses deuses caçadores era um presságio para a morte, e uma lembrança, de que a vida se nutre do passamento cíclico da luz para a escuridão, e de que, deste modo, a Longa Noite do Inverno também fazia parte da natureza harmoniosa do Mundo.




* O que faz do Demônio Escuridão no filme a Lenda uma versão maligna da divindade celta. e uma clara derivação ou herança das mesmas fontes que inspiraram Tolkien e o Demônio Medieval
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Ocorre, entretanto, que o deus tolkieniano Oromë, do qual Tilion “cornudo” era um vassalo, não somente era o protetor das florestas, assim como Herne, como, também, era o Grande Caçador, cujo nome significa, precisamente, Tocador de Trompa ( que é também “horn” em inglês porque as trompas eram , originalmente, feitas com os chifres de animais, vide o nosso “berrante” ). Oromë, que tinha muitos nomes entre os homens ( que seriam, assim, os vários apelidos dados ao mesmo arquétipo) era chamado nas regiões meridionais de Gondor, um reino na mitologia de Tolkien, de Araw , um nome que, obviamente , é a versão tolkieniana do celta Arawn.



Empregando a engenharia reversa, torna-se claro o motivo que levou Tolkien a batizar de “cornudo” um servo de um deus benéfico. Os caracteres do deus celta que serviu de inspiração para o “vala” de Tolkien foram redistribuídos entre Oromë e seu vassalo. Oromë ficou sendo o caçador, o portador do nome Araw e o tocador de trompa, senhor da Caçada Selvagem, enquanto Tilion ficou sendo o “munido de chifres” e um caçador menor do séqüito de Oromë.

Mais tarde, promovido a guardião da flor mística, que é a luz da lua, e piloto da nave que é o orbe lunar, ele se torna o “Homem da Lua”, e os chifres que são seus atributos se ajustam perfeitamente à nova função porque os animais com cornos também são associados com a lua que é símbolo de fertilidade assim como os chifres ( daí o conceito de “cornucópia” ).


Também não é obra do acaso que em inglês exista uma expressão muito conhecida chamada a “Lua do Caçador”. É a lua cheia que mostra as presas a serem caçadas durante a noite, sobretudo a que vem no mês de Outubro no Hemisfério norte, o mesmo mês da folclórica Caçada Selvagem..





Yavanna, Oromë e seu "casamento" cósmico-A Hierogamia entre o deus e a deusa




Essa ligação com o Deus de Chifres também ajuda a esclarecer porque é que Yavanna no tempo de HoME V, The Lost Road, concebia Oromë como um dos seus filhos, aparentemente, sem ter ainda casado com Aulë. Naquele tempo da concepção do Legendarium não existiam ainda os Maiar e diversos deles eram filhos dos Valar.

Tal relação, similar à que Hera tinha com Hefesto e a de Zeus com Atena, onde os deuses concebiam filho sem consorte , no caso dos dois Valar, se explica muito melhor com a noção de que a Deusa da Terra e da fauna e flora célticaformava um casal "cósmico" com o Deus de Chifres onde ela era, ao mesmo tempo, a Mãe e a Esposa dele, simbolicamente, gerando o deus vegetal que morria e ressuscitava todo os anos e que era o Senhor das Feras e o Caçador quando renascido a partir do seio de sua Mãe Terra.Por isso e que a irmã mais nova de Yavanna, Vána, era a esposa de Oromë, lembrando muito a Blodeuwedd celta, a dama das flores.Digno de nota é que Vana era o nome sânscrito para "floresta", diversos nomes do idioma valarin de Tolkien parecem calcados no sânscrito e no hindi, o que evoca novamente a noção de casamento da Deusa-Terra com o Rei das Feras

E esse negócio de concepção "imaculada" hein? interessante que é por isso que Marion Zimmer Bradley disse que todos os deuses e todas as deusas são um só Deus e uma só Deusa.)

Então é provavelmente por isso que Tolkien, uma vez, fez com que Oromë fosse produto do pensamento de Yavanna sozinha, uma espécie de versão menor do que ocorria com os Valar e Eru Ilúvatar.Assim como eles eram a prole do pensamento do Único , Yavanna também teria a singularidade de gerar uma vida independente a partir dos seus próprios pensamentos, como se ela tivesse expelido de si própria uma versão masculina do seu ser.Essa idéia depois foi reaproveitada quando Tolkien fez dela a genitora da raça dos Ents , que são Jacks do Verde, ou Homen Verde,Green Man, correspondente à versão sacrificial sazonal do Deus de Chifres, interpretado por Tom Cruise no fime A Lenda.

Uma projeção do Animus ( a parte "masculina" da psiquê na concepção de Jung) tornada autosuficiente. que se dedicava a proteger com fúria e armas as coisas que ela prezava e protegia de forma "passiva".

and Orome was the offspring of YAvanna, who is after named, but not as the Children of the Gods born in this world, for he came of her thought ere the world was made.

e Oromë era o rebento de Yavanna, que está mencionada depois, mas não como os Filhos dos Deuses nascidos neste mundo, pois ele proveio do seu pensamento antes do mundo ser feito.

É provável também que o nome de Oromë como guardião das Florestas igualmente refletisse essa origem céltica, já que ele era chamado Tauron, lembrando, automaticamente, touro, tauros em latin, um animal de chifres , frequentemente oferecido como sacrifício aos deuses, associado com a divindade celta Tarvos Trigaranus

Esse, por sua vez, é quase idêntico a outro nome dado a Oromë no tempo de The Lays of Beleriand, Tavros.Tavros que também significa "touro" em grego e é o nome de uma cidade) . Então, temos Tauron, que no Tolkien significa "da floresta", derivado do latin tauros, temos Tavros adaptado do grego, tavros, gerando um análogo do nome gaulês para touro, Tarvos, que era o nome de uma divindade.







Then Thingol said: '0 Dairon fair,
thou master of all musics rare, 885
0 magic heart and wisdom wild,
whose ear nor eye may be beguiled,
what omen doth this silence bear?
What horn afar upon the air,
what summons do the woods await? 890
Mayhap the Lord Tavros from his gate
and tree-propped halls, the forest-god,
rides his wild stallion golden-shod
amid the trumpets' tempest loud,
amid his green-clad hunters proud,

The name Tavros given to Orome (891, 904) has occurred long before in the Gnomish dictionary, defined as the 'chief wood-fay, the Blue Spirit of the Woods' (I. 267, entry Tavari). With his tree-propped halls (892) compare the description of Orome's dwelling in Valmar in the tale of The Coming of the Valar and the Building of Valinor, I. 75 - 6. At line 893 is the first mention of the golden hooves of Orome's horse.




O análogo de Cernunnos e de Oromë no jogo Warcraft, o Semi-Deus Cenarius, defensor da Floresta,filho da Deusa-Mãe dos Elfos da noite, a deusa da lua , Elune. Eu sempre me perguntei o porque dele ser "azul". Parece que ai pode estar a resposta, ele parece ser uma engenharia revertida de Oromë voltando-o o pra sua fonte que é Cernunnos , o deus de chifres


O touro então, desempenhava um papel importante na ignota e misteriosa cosmogonia celta e, provavelmente, era ligado à imagem do Deus de Chifres tal como era adorado entre os Cretenses, o que teria originado o mito do Minotauro entre os gregos.



"A família que caça unida..." de Jonathan Earl Bowser


Juntos ambos os deuses, o Deus de Chifres e a Deusa Terra, no imaginário "celta" reconstruído do seculo XX, são os mantenedores da ordem natural do Mundo e, por isso, Tolkien parece ter feito de Yavanna e Oromë os mais afeiçoados à Terra Média, sendo seus arquétipos e características ecoados até um certo grau , junto com suas influências no caráter e natureza misteriosos de Tom Bombadil e Goldberry.

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